Nada falha

Tem algumas caixinhas da nossa memória que, sei lá porque razão, ficam fechadas, mesmo que guardem passagens bonitas, agradáveis. Acho que temos mais caixas guardando histórias boas do que ruins, ainda bem, então nem sempre a gente encontra todas, acaba ficando alguma lá atrás, e encontra-la por acaso é um deleite.

Ontem eu achei uma dessas. Alguém que eu sigo no Instagram postou o trecho de uma música que eu não lembrava, mas adorava. Gostava tanto que comprei o disco há vários anos (ou gostava muito de tanto ouvir o disco?). Eu não tenho mais esse disco, onde foram parar nossos discos? Foram todos pra uma dimensão paralela, dos discos físicos que se sentiram colocados de lado? O disco era American Life, de Madonna. Comprei com minha irmã, em um daqueles que eram nossos programas preferidos: comprar discos na Flashpoint, no shopping Barra. Nosso vendedor era sempre Fábio Cascadura, conhecedor de música como só ele. Não sei se ele gostava de vender Madonna. Mas a gente amou tanto aquele disco, não sei como ele foi sumir. Lá a gente comprou alguns de Santana, Silverchair, outros. Essa lembrança já anda empoeirada. Tempo que passa ligeiro.

A música que abriu essa caixinha foi Nothing Fails. Uma beleza. Nada falha, tudo está em seu lugar. “Eu não sou religiosa, mas me sinto tão tocada. Não sou religiosa, mas isso me faz querer rezar”. A pessoa postou essa música diante da imensidão de um mar visto de cima de um penhasco. Esplendoroso. Imagem que faz qualquer um querer rezar em agradecimento.

Eu tenho muito a agradecer. Nas conversas com minha irmã na infância, bem antes das idas à loja de discos, a gente sonhava com o futuro. Como todo mundo no mundo, a gente queria ser rica um dia. Eu não sou rica, olha, tô bem longe disso. Mas eu acabo de perceber que o que eu desejava ter é exatamente o que eu tenho hoje. Uma casa minha, bonita, que me faz gostar de estar nela, uma família que dê vida a essa casa. Poder viajar pelo mundo de vez em quando. Comprar um presente pros meus filhos (que na transição pra realidade virou uma filha ❤️) de vez em quando. Era viver o que eu vivo hoje. Eu nunca sonhei com jatinhos, joias, piscinas de dinheiro. Criança sabe das coisas, brinca com caixa, fica feliz com qualquer troço que lhe traga um sorriso. Então a riqueza daquele sonho, que surpresa, eu tenho demais. Perceber isso hoje, foi a minha versão de estar diante da imensidão de um mar, visto de cima de um penhasco, esplendoroso.

Nada falha.

Não somos atletas da sobrevivência

Assisti hoje o capítulo final de “13 Reasons Why”. Eu estou tão impactada, que aí vão dois alertas. O óbvio spoiler sobre o final dessa história (ainda que todo mundo já saiba), e um inevitável alto teor de tristeza nas minhas palavras. Desculpem.

Eu não fui capaz de manter os olhos totalmente abertos na cena em que aquela menina corta os pulsos. Mas ouvi seu desespero ao ver que o sangue estava jorrando pra fora de seu braço esquerdo, embora fosse esse o plano. Ver é diferente. E vi que ela, ainda que chorando e muito nervosa, ainda cortou o outro. E esperou que toda a vida saísse de dentro dela, porque era melhor isso do que continuar dormindo e acordando todos os dias. Do que continuar vivendo. Do que encarar suas próprias escolhas e sua fraqueza, e a indiferença, e o medo, a angústia, a rejeição, a sua própria inabilidade. Que tristeza ainda maior foi ver sua mãe entrar no banheiro e ver a banheira cheia de sangue e sua menina inerte. E quando o pai dela chegou, achei que ia desmaiar quando ouvi sua mãe dizer “ela está bem”, só porque não dava pra conceber a morte de sua filha. Eu avisei. Há tristeza demais nesse texto. Publico porque foi o que eu senti, e eu registro aqui o que eu sinto, mas muito provavelmente ninguém nem deveria ler. É só um monte de tristeza traduzida.

Mas em algum momento nós vamos ter que falar sobre bullying. Seriamente. Bullying não é apenas ser chamado de quatro olhos, vara pau, rolha de poço, vagabunda, bizarro. Não é apenas isolar alguém, rir de alguém, maltratar alguém. Não é apenas ter um bode expiatório de estimação. É tudo isso. É mais do que isso. “Todo mundo passou por isso na infância e sobreviveu”. Não, nem todo mundo sobreviveu. Alguns não.

A minha primeira pergunta – e aí vão muitas – é: quando é que vamos amadurecer? Quando vamos acreditar que é preciso viver, e não sobreviver? Quando iremos sair do raso e dar um passo à frente em direção ao ser humano melhor que precisamos ser? Há outros no mundo, ninguém está só. Não estamos competindo uns com os outros o tempo inteiro. Não somos atletas da sobrevivência. Não há medalhas para os melhores seres humanos do mundo, mas também não há para os que conseguem provar que os outros são piores. Não há estudos provando que diminuir os outros nos faz sentir melhores.

Quando vamos aprender? E principalmente, quando vamos começar a ensinar isso ao outro? Aos nossos filhos? Aos nossos amigos, quando o vimos rebaixar alguém, ou humilhar, na presença ou na ausência? Quando vamos discordar, sob pena de parecermos sem graça, ou desmancha prazeres? Quando vamos aceitar a diferença? Melhor ainda, quando vamos entender que não temos que aceitar as diferenças, porque elas não existem para serem aceitas ou rejeitadas por ninguém? E sim para nos tornar humanos, porque humanos são diferentes? Quando vamos parar de assustar as pessoas com a maldade que está sim, dentro de nós? Quando vamos assumir essa maldade?

Desculpem. Trago muita angústia, muitas perguntas, nenhuma resposta e uma visão meio sombria de tudo isso. Eu avisei. Tem muita melancolia aqui. Estou impactada pelo que acabei de ver, achei mesmo que fosse vomitar, ou desmaiar. Confesso que a série toda é até um pouco arrastada. Mas o final foi muito doloroso de ver, assim como foi doloroso perceber, em cada cena, a indiferença construindo uma tristeza tão irreversível naquela menina, que a levou à terrível decisão final. É duro assistir a morte. Ainda mais quando alguém decide se matar. Jamais compreenderei. Nunca cheguei a uma conclusão sobre o suicídio, se seria muita covardia ou muita coragem, acho que os dois. Na medida errada de cada uma dessas duas coisas. Mas precisamos tentar enxergar nossa culpa diante do suicídio de alguém. Acho que o mundo inteiro tem culpa quando alguém resolve se matar. Não cada um de nós como indivíduos, mas nós como sociedade. Falhamos com aquela pessoa. Sei lá. Mas vamos ter que rever a forma como educamos os nossos filhos. Como interagimos uns com os outros. Não estou sonhando com o mundo ideal. Talvez eu seja sonhadora, mas não sou a única. Eu tenho uma grande oportunidade de fazer algo, minha filha. Estou acumulando clichês nesse fim de texto, já percebi também. Mas tudo bem, a essa altura só eu mesma estou acompanhando minhas próprias palavras carregadas de melancolia.

Sobre o espelho que quero ser

Eu faço qualquer coisa pra que o sorriso dela não se desfaça. Ou se transforme em tristeza, ou pior, e muito por, em medo. Frustração às vezes tem, faz parte da vida, que não nos dá tudo. Mas tristeza não. Medo, por favor, não. 

Às vezes eu finjo. Às vezes eu só quero chorar e ficar sentada num canto, sozinha, a testa nos joelhos, chorando. Às vezes eu quero tomar banho pra chorar lá dentro, porque chorar na chuva ou no chuveiro é uma boa estratégia. Ninguém precisa saber se a gente não quiser que ninguém saiba. Porque às vezes somos tomadas por tristezas também. O mundo é duro. Há tristeza no mundo suficiente pra cada um dos sete bilhões de seres humanos. A tarefa é árdua. A responsabilidade é grande. E eu sou só uma menina. Às vezes covarde, medrosa, triste e cansada. Então às vezes eu finjo que não estou triste, pra que ela não veja. Às vezes eu olho pra ela e ela me olha, e eu sei que ela está buscando em mim algo pra ela ser. Eu sei que é do ser humano ficar triste de vez em quando, mas ela ainda é tão miudinha. O máximo de tristeza que por enquanto eu suporto ver nela é quando está na hora do banho e ela ainda quer brincar “só um pouquinho”. Ou quando ela me pede o “bubu” e eu não dou. 

Ela me ama e me acha bonita. Ela mexe nos meus cabelos, ela mexe nos meus dentes e ri. Ela vê o aparelho em meus dentes e quer mexer. E eu não tenho nenhuma vergonha de mostrar pra ela meus dentes tortos, e os espaços deixados pelos dentes que precisei tirar. Ela acha tudo bonito, e sorri com aquele olhar. E eu sei que ela quer se espelhar em mim. E sei o quanto preciso melhorar pra servir de espelho pra ela. E tenho tentado superar meus medos, e ser boa, e ser forte, e ser altiva. Ensinar não é fácil. Mas é o que eu faço. Não que eu faça bem, mas eu faço. Eu faço isso todos os dias. Eu tenho certeza que podia fazer muito melhor. E isso às vezes me deixa triste. Mas é o que tem pra hoje, meu amor. Não haverá mãe perfeita pra você. 

Mas haverá uma mãe que quer, todo santo dia, ser melhor. Sossegar. Te ensinar a calma. A ver a vida de uma forma positiva. A pensar que tudo bem se algo não saiu como o planejado, porque o mundo não nos deve nada e a gente sempre pode tentar de novo. A gente tem aquilo pelo que a gente batalha. E se a gente já tem saúde, família, amigos, amor, nossa casa, a gente já tem tudo. O que vem além disso é merecimento, é espelho do que nós somos pro mundo. E eu quero que você tenha serenidade e equilíbrio em seu coração pra ver o que tem que ser visto e oferecer somente o que você tiver de melhor. Eu quero que você seja boa, pra que o mundo seja bom com você. Essa é a minha tarefa. 

Sobre a covardia que nos salva da loucura

Eu sou covarde. Diante de notícias muito ruins, eu só penso em fugir. Eu não quero mais falar nem ouvir falar. Não quero não. Não quero terceirização, previdência, CLT, temer, maia, financiador de campanha, bandido, ladrão, não quero, chega disso! Ao inferno com suas intenções! Há a hora de gritar e lutar, agora eu quero fingir que vocês não existem, malditos.

Fiquei com vontade, isso sim, de falar da chuva. Tem chovido tão bonito na minha janela. Pra mim, né, que estou de férias, e meu deslocamento mais distante tem sido levar e buscar minha filha na escola e passar no mercado, no caminho, pra comprar uma fruta, um arroz, um açúcar. Na maior parte do tempo estou escutando o estalo da chuva na esquadria da janela. O ruidinho surdo que faz quando o aguaceiro cai na grama da pracinha. Delicioso. Me lembra muito a minha infância. Acordar com a chuva na janela, e especialmente o barulhinho de um cano que tinha no alto do meu prédio, que escorria a água que acumulava na laje. Eu não sabia na época, mas eu adorava aquele barulho, era sinal de que chovia muito, do jeito que eu gosto. Aqui não tem um desse. Sinto falta.

Tem ficado escuro mais cedo. Março, te amo.

Vou ficar aqui, escondida das notícias por hoje. Escondida na terra encharcada, no cheiro hipnotizante da chuva, no barulho dela. No verde que ela trouxe pra praça. Na erva daninha que cresce entre as pedras portuguesas da praça. Concentrada em fechar a janela antes de deitar. Vai chover, que bom.

Isso nunca muda, vai chover sempre. Vai ter barulhinho, vai ter lembrança, vai ter essa paz que a chuva me dá. Deixa o noticiário pra amanhã. Vai chover.

200 milhões de cavalos

O brasileiro precisa amadurecer. Passar dessa adolescência política que divide o país em coxinhas e mortadelas, pelo amor de Deus. Observem lá na frente. Está para ser aprovada a tal Reforma da Previdência, prevendo que cada um de nós tenha que trabalhar durante 49 anos – e contribuir com a Previdência por todo esse período. Não é simplesmente se aposentar só com 65 anos. É com 65 anos no mínimo. Isso se você tiver contribuído com a previdência por 49 anos. Tem que começar a trabalhar com 16, com carteira assinada, e continuar até 65. Sem ficar desempregado, sem deixar de contribuir nem um único mês. Se ficar desempregado, vai somando o tempo sem trabalho aos 65, e sua aposentadoria vai indo pra frente. 67, 70, 75. Aposentar não pra curtir um pouco a vida, não para viajar, fazer um curso. Aposentar pra pagar plano de saúde, absurdamente caro. Num país onde o desemprego é uma realidade. Onde uma pessoa acima de 45 anos é considerada velha pra assumir qualquer vaga de emprego. Onde em muitos lugares a expectativa de vida é menor do que 65 anos. E tem mais. Um país onde a mulher ainda assume quase que totalmente os cuidados com a casa, por ser um país machista e mal criado, quer igualar a idade mínima e tempo de contribuição para homens e mulheres.

Enquanto isso, quem vai aprovar a reforma não está incluído nas mesmas regras que nós. 

Enquanto isso, Temer está aposentado desde os 55 anos. Recebendo 30 mil por mês. 

Aliás, enquanto isso, a gente come carne estragada.

Enquanto isso, pra provar que a carne brasileira é boa, Temer leva embaixadores a churrascaria que só vende carne importada. A um custo de quase 14 mil reais num jantar, pago pela Presidência. Rodízios. Bebida. Sobremesa. Cafezinho.

Enquanto isso, grandes importadores de carne brasileira suspendem a compra da nossa carne. 

Enquanto isso, a economia brasileira vai cada vez mais de mal a pior. 

Enquanto isso a economia cai, o desemprego aumenta.

Enquanto há mais desemprego, o brasileiro vai precisar contribuir com a previdência por 49 anos. Não irá se aposentar.

Parem, apenas parem. Estamos discutindo o sexo de um anjo enquanto um bando de mal intencionados acaba com o nosso país. Eu não admito. Eu não aceito.

Somos mais de 200 milhões. É como a história do cavalo, sendo chicoteado por um menino. Nenhum dos dois percebe a diferença de força que os separa. Se o menino soubesse, não chicoteava o cavalo. Se o cavalo soubesse, não seria jamais chicoteado pelo menino.

Estamos sendo o cavalo. 200 milhões de cavalos.

Pensando em você

É difícil escrever um livro. Agora que eu resolvi sentar pra escrever um, percebi que não vai ser tão simples quanto pensei. Que droga. Achei que em um mês de férias ia conseguir avançar um bocado. Aqui estou eu, sentada na sala de minha casa, numa tarde até fresquinha. Tem feito muito calor, mas hoje está agradável. Eu tenho uma grande responsabilidade que é contar pra minha filha todas as coisas que ela tem me ensinado. Todas as mudanças que o mundo sofreu desde que ela chegou, principalmente no meu mundo. Meu Deus, mudou tudo. Eu vou ter muito trabalho. Mas eu não consegui escrever nada digno dessa tarefa ainda, então vai ficar pra depois.

Mas tem tantas coisas em meu coração que eu gostaria de dizer… Quantas vezes eu chorei. Todas as vezes que eu chorei de medo! Medo do absurdo que é virar mãe. Eu não estava preparada! Acho que ninguém está. Não está. Ninguém sabe como vai ser, até que é. Quando ela chegou, eu achei estranho. Era tão maravilhoso o futuro estando diante dela. Ela me fez sentir protegida. Nada poderia me acontecer de ruim, eu tinha uma menininha pra cuidar. Todas as promessas estavam sendo cumpridas, eu tinha uma menininha. Mas eu enlouqueci no dia seguinte. Eu acordei e não entendi absolutamente nada. Durou algumas horas, mas eu voltei. É tudo verdade. Depois de encarar esse portal pra loucura, eu voltei. E nasci também. Eu nasci de novo naquele dia. E como todo recém nascido, eu não sabia de absolutamente nada ainda. Eu aprendi muita coisa em muito pouco tempo, eu chorei, eu tive medo, eu me encantei pelo mundo novamente. Não é exagero. É a transformação mais devastadora e ao mesmo tempo sutil que pode haver. Você só percebe com o tempo que aquilo que você foi você não é mais. Deus, como é complicado de entender. Eu não poderia jamais conseguir explicar.

Mas é tão maravilhoso. Minha filha me mostrou o mundo de novo. Não era como eu pensava. Eu não enxergava as coisas direito. Eu não entendia muito bem sobre os sentimentos. Agora eles vem crus, com uma força quase rude. Mesmo os bons, chegam tão intensos que a gente precisa respirar fundo pra não engasgar. Ela coloca as coisas em seus lugares em minha cabeça. Ela me dá a mãozinha e olha pra mim com uma confiança tão grande. Ela sabe que eu estou ali por ela. Ela não sabe, mas quando ela deita em meu colo aquele é o melhor colo que eu posso ter. E eu estou em casa, e eu estou de folga, quando estou no colo dela. Vontade de viver pra sempre, para estar com ela.

Te contar tudo isso vai ser difícil, meu bem. Mas mamãe já está se acostumando com as tarefas difíceis. Se não der, eu espero você crescer, e a gente vai conversando. Obrigada por me trazer para o mundo de novo.

Açúcar, lactose, glúten e outros elementos procurados pela polícia

Um fenômeno estranho tem acontecido ultimamente: eu ando com vergonha de gostar de comer. Pra ser honesta, com vergonha de comer sem vergonha. Com glúten, lactose, açúcar, farinha branca, sal, manteiga e todas essas maravilhas que existem no meu mundo, e que foram banidas das mesas de quase todo mundo que eu conheço. Essas maravilhas que fazem pães, doces, tortas, guloseimas de todo tipo e que me fazem feliz e satisfeita.

Eu tenho a impressão que antigamente as pessoas eram mais felizes e menos “policiais de si mesmas”. Depois que o glúten deixou de ser pesadelo exclusivo dos celíacos (pessoas que não digerem glúten), e que a lactose também virou assunto tabu nas mesas, eu fiquei meio sem assunto. Virou tudo “lacfree” (porque não basta não ter lactose, tem que ser em inglês), glútenfree, frutose também virou ‘persona non grata’, carne não convém, e eu não sei de que esse povo vive. É só frango, ovo, batata doce. Tenho uma amiga que eu adoro que come cinco ovos todo dia de manhã (“mas só uma gema”), e lancha frango puro desfiado à tarde. Academia sexta, sábado E domingo. Tem um corpo maravilhoso, barriga zero, magra e linda. Mas não é caro esse preço?

Sei lá, eu decidi que vou ser assim como eu sou. Tenho a sorte de ser magra mesmo comendo consideravelmente. Mas tem um monte de coisa sobrando e faltando aqui e ali em mim. Mas e daí? Quem foi que disse que todo mundo tem que ser desse ou daquele jeito?  Por que eu preciso me sacrificar pra me aceitar, pra gostar de mim? Tem tantas coisas em mim que eu adoro. E tantas que eu detesto, e que preciso mudar muito mais urgentemente do que minha barriga. Por que as pessoas deixam de ser barrigudas mas não deixam de ser, sei lá, mentirosas primeiro? Por que deixam de ser flácidas e não deixam de ser chatas? Minha amiga malhadora que faz muita dieta não é mentirosa nem flácida, pelo contrário. Eu diria que ela é um abuso, porque é linda, engraçada, inteligente e adorável. Mas ela podia ser mais feliz e não morrer de inveja dos meus pães matinais. 

É claro que uma vida saudável pede alguns sacrifícios. Todo exagero é ruim. Mas a vida já tem suas amarguras. É preciso um chocolate de vez em quando. Um brownie. Um pão quentinho. Um queijo derretido. Uma pizza marguerita. Uma panqueca, um sorvete, uma paçoca. De vez em quando. Não precisa ser todo dia. Todo dia só eu, que já estou a caminho da marginalidade e um caso perdido. Mas realmente defendo que as pessoas sejam juízas menos severas de seus corpos. Felicidade também é saúde.

Duas palavrinhas sobre o fracasso dos outros

Você, alguém sem filhos, que sabe tudo sobre ser uma boa mãe, a mãe que educa e impõe limites carinhosamente, tá lá sentada numa praça de shopping. Aí chega uma mãe com uma criança birrenta no colo. A mãe, visivelmente sem paciência e mal humorada, coloca a chupeta no boca da criança. Ela silencia e a mãe respira fundo. “Grande mãe. É por isso que a criança é birrenta. Basta ensaiar um choro que a mãe dá chupeta. Tsc.”

Cena mais do que comum, julgamento imediato. Mas deixa eu contar pra vocês essa mesma cena de outro ponto de vista: o da mãe.

Ela não tem babá. Divide os cuidados da filha com o pai, que trabalha pela manhã enquanto ela trabalha à tarde. Naquele dia ela precisou sair pela manhã pra resolver um problema burocrático urgente, e precisou levar a filha, bem na hora em que ela tiraria sua soneca, tranquila, em seu quarto com ar condicionado. Mas não naquele dia de calor. Naquele dia sua mãe chegou em seu quarto, a chamou pra passear, toda sorridente e carinhosa. Sabia que a tarefa seria difícil, e quis que sua filha não se chateasse tanto por ter que trocar a soneca pela rua calorenta e cheia de gente desconhecida.

A mãe a trocou, ela não gostou. A mãe escolheu dois brinquedos que a filha gostava e colocou na mochila, junto com suco, e o biscoito preferido. A filha só chorava. A mãe compreendeu. Era chato mesmo. Teve que pegar no colo, a burocracia na rua precisava ser resolvida. Colocou a filha no carro e lá foram elas. 

A mãe ouviu no caminho, pela milionésima vez, as músicas que sua filha gostava. Ouviu e cantou, e bateu palmas. O trânsito era ruim. O horário estava apertado, ainda ia trabalhar naquele dia. Sua filha, quietinha, parecia se entregar ao sono. Bem quando elas chegaram ao shopping. A mãe tirou da cadeirinha com todo cuidado, talvez ela continuasse dormindo em seu colo. Não deu certo. Sua filha acordou, e compreensivelmente, chorou, chateada. A mãe tentou coloca-la no chão, mas a menina estava sonolenta e irritada. Pegou no colo, pegou a mochila e ainda uma pasta de documentos, equilibrou tudo em dois braços. Foi à agência bancária. Enfrentou alguma fila, mesmo de prioridade. O caixa a disse que faltava um documento. Não resolveria o problema naquele dia. Naquele dia difícil. Não.

A mãe, cansada, frustrada, pensou que poderia estar em casa, enquanto sua filha dormia tranquila em seu quarto, com ar condicionado, e teve uma vontade enorme de chorar. Não era a primeira vez que se via sozinha numa situação complicada, tendo que resolver muitos problemas com sua filha no colo. Estava quase atrasada, mas morta de cansada. Achou um banco vazio no shopping e se sentou um pouco. Sua filha, também cansada, com sono e muito chateada, chorava. Sua mãe, como um último recurso, resolveu ignorar o “bubu é só pra mimir”, e deu a chupeta à filha, pra ter dois minutos de silêncio.

Havia uma mulher ao lado dela. Sem filhos, sabia tudo sobre ser uma boa mãe. “Grande mãe”, ela pensou.

Graças a Deus pelo morango – e pela farinha

Hoje eu agradeci a Deus porque eu tinha morango em casa. E imediatamente depois pedi desculpas a Ele porque eu tinha dito tal bobagem. Vou explicar a confissão pública.

Minha filha adora morango, que ela chama de “mangos”. Nem sempre eu acho, nem sempre dá tempo de procurar, nem sempre tem. Ela adora iogurte, que pra ela é “none”. Sempre compro, mas um dia a plaquinha acaba, e é justamente naquele dia que a gente esquece de passar no mercadinho na volta pra casa. Ela adora suco e água de coco. Tem, mas acaba. Sabem como é. 

Ocorre que hoje, antes de ir pra casa, eu lembrei de tudo isso e achei morangos maravilhosos, maracujá maduro, iogurte natural. Cheguei em casa, a casa estava arrumada e limpa, e minha família tranquila. Entre uma brincadeira e outra, ela disse “qué mangos”, como faz quase todo dia, e hoje tinha. Senti aquela paz que a gente sente quando está para fazer o filho feliz e pensei: “Deus, obrigada por poder dar morangos a minha filha”. Mas logo depois senti um aperto no coração. Sei que não dá pra carregar nos ombros as dores do mundo, mas minha cabeça, juíza dura de mim mesma, imaginou que havia alguém, em algum lugar, agradecendo a Deus por ter farinha pra dar ao filho. Sei lá. Parece muito piegas. Hipócrita. Demagógico. Não é. Me envergonhei por agradecer pelo morango. Fiquei constrangida diante do meu pensamento e de Deus.

Acho que depois compreendi que cada pessoa vive dentro de uma dimensão, e cada dimensão comporta dores e satisfações próprias, proporcionais. Tentei suavizar minha pena. 

Dei “mangos” a ela, que devorou feliz. E tranquilizei um pouco meu coração de mãe.

Alguém por aí deve estar agradecendo a Deus por poder colocar o filho na melhor escola de Londres, por comer caviar quando dá vontade, por poder presentear alguém que ama com uma casa. Tudo que não está na ‘minha dimensão’. Sei lá o que andam dizendo a Deus. 

No fim, refiz o agradecimento pelo meu morango. E pela farinha de alguém. Ele vai entender.

Uma carta para Mark

​Há alguns dias postei uma foto de minha filha no Instagram e escrevi algumas palavras pra ela. Eu faço muito isso. Nessa foto, uma amiga comentou que eu deveria imprimir todas as fotos que posto e o que escrevo, porque um dia essas plataformas virtuais poderiam não existir, e assim ela jamais saberia todas as coisas que escrevi sobre / para ela, em que fotos, vídeos, essas coisas. Desde então, essa possibilidade, ainda que remota, não me sai da cabeça. “Não, isso jamais aconteceria”, eu me digo, sempre com uma cara desconfiada de “mas e se?”

Então pensei em escrever uma carta aberta para o Instagram, o que me leva a escrever uma carta para Mark, o nerd que tomou um pé na bunda, criou o Facebook, ficou bilionário e resolveu sair por aí comprando todas as boas ideias que dão (muito) dinheiro.

Mark, precisamos que você assuma um compromisso. Acontece que você tem aí em seus servidores, em suas nuvens, esquemas, ou sei lá onde, todas as nossas memórias virtuais – porque nos desacostumamos a ter memórias físicas. Pouquíssimas pessoas imprimem fotos hoje em dia, e a partir de agora as novas gerações vão fazer isso cada vez menos, até que um dia crianças não vão saber que houve um tempo em que tínhamos 36 poses num filme, economizávamos cliques, e se alguém piscasse na hora H, “problema seu, não vou tirar outra”. 

Já virou vintage ter álbuns com fotos em envelopes de plástico, uma em cada cenário daquela viagem inesquecível, ou daquela turma de amigos. Depois que tivemos a chance de ver como a foto ficaria, tirar várias e apagar as ruins, acabamos tendo várias fotos com a mesma pose e não imprimimos nenhuma. Quem nunca abraçou amigos diante da câmara e disse “tira várias, pra garantir?” Pro Instagram vão as melhores, as escolhidas, devidamente “filtradas” e legendadas. É o nosso álbum. Então, Mark, tirar e ver fotos pra nós virou essa experiência diferente, não física, que nos permite ‘folhear’ álbuns de amigos distantes, comentar, trocar lembranças, fazer selfies, cometer exageros. Mas são nossas memórias. E o que sentíamos diante delas. O que eu disse quando postei a primeira foto do apartamento onde fui morar sozinha quando saí da casa dos meus pais? A imagem da primeira ultrassonografia? As fotos das viagens inesquecíveis, ou os vídeos corriqueiros e ainda assim encantadores de cada passo de minha filha? Como poderia perder todos os comentários que recebi e fiz em registros especiais? Não poderia. Mark, você tem um compromisso com a gente.

Acalme essa agonia gerada por minha amiga, que, coitada, tinha a melhor das intenções. É aquela história do príncipe e da raposa. O Instagram nos cativou e agora é eternamente responsável por nós.

Super heroína? Não, obrigada

Não que isso realmente interesse a quem quer que seja além de mim, e dos que tomam banho em minha casa, mas a resistência do chuveiro foi trocada. E como falei disso aqui há alguns dias, achei que seria justo fazer a atualização. Chego assim ao fim de uma crise, que me fazia respirar fundo a cada banho, triste que ficava ao ter que encarar a água gelada. “Justo nesses dias frios de Salvador”, “como se frio houvesse por aqui”, “era o meu frio, meu corpo, minhas regras”.

Mas numa dessas noites, exausta do dia cansativo no trabalho, e da tarde de brincadeiras e corre corre atrás de minha filha de menos de dois anos, encarei o chuveiro jorrando água gelada e disse: “Vá! Você não é ‘retada’? Poderosona? Super heroína?” E então parei e respondi que não. Não quero ser ‘retada’, poderosona, nem super heroína. Pra falar a verdade, às vezes eu gostaria mesmo é de um pouquinho de mamata, pra variar. Eu já tenho jornada tripla, trabalho fora, trabalho em casa e sou mãe de uma menininha super saudável (leia-se “terremoto”). Seria demais pedir um banho quentinho antes de dormir? Mas como não havia jeito, acabei dando meus pulos, literalmente, debaixo d’água.

Outro dia entrei num supermercado, enchi um carrinho, e fui embora de mãos vazias porque esqueci a carteira em casa. Controlei a irritação, fui em casa, peguei a carteira, fui a outro supermercado mais próximo, e enchi novo carrinho. Uma das tarefas mais chatas da vida de uma dona de casa foi feita duas vezes por mim numa tarde. No fim de um dia assim, gosto de me condecorar com uma medalha mental de super heroína. Uma espécie de compensação pelo tamanho da batalha diária. 

Batalhas temos todos. Algumas maiores, outras menores. Na verdade, na verdade, se a gente for enumerar, tomar um banho frio é a menor das nossas questões existenciais. Mas é que naquele dia essa foi pra mim, justamente, a gota d’água. Fria.

PS: lembrar da resistência

A campanha política começou anteontem e eu já a odeio com a força de Hércules. Não porque não gosto de política (ruim com ela, pior sem ela), não porque são mentiras muito pouco sinceras, não porque entram em cadeia de rádio e TV (viva as TVs por assinatura e Netflix). Mas porque os carros de som podem acordar minha filha na soneca do fim da manhã. E eu amo/preciso/aguardo ansiosamente a soneca dela do fim da manhã. É quando eu faço uma pausinha no meio do dia pra descansar do Discovery Kids, do cavalinho upa upa, do corre corre pra lá e pra cá, do descasca fruta, faz suco, bate palma, tudo que eu amo fazer só pra ver o sorrisinho dela, mas que durante 12 horas seguidas exaurem qualquer ser humano. E assim que a ponho no berço e saio do quarto, um pagode quebradeira passanarua e grita que ninguém “vai fazer o que ele fez”. Paro de respirar por alguns segundos: ela não acordou. Pulei essa fogueira.

Deito na cama e começo a pensar em todas as coisas chatas de adulto que não tenho tempo de pensar enquanto vejo Peppa e começo a listar na cabeça coisas que preciso fazer durante a semana. Ver o que preciso comprar no mercado para a semana. Não esquecer da resistência do chuveiro, que queimou e tenho tomado banho gelado – ge-la-do – toda noite antes de dormir. Mas não consigo lembrar qual o modelo porque a essa altura passa o carro de som da mais nova Santa Francisca de Assis, defensora de animais. Volumes altíssimos. Músicas medonhas. Números, números repetidos e gritos. O que eles pensam? “Quanto mais a gente escandalizar a vizinhança mais pareceremos confiáveis”? Malditos sejam todos. Já passaram uns cinco. Paro de respirar toda vez que um treme minha janela. Vontade de jogar um ovo em cima, ou um tomate, mas tá tudo muito caro. E pensar que isso ainda leva uns 40 dias.

Volto à minha lista, que tem dois itens. Deixo pra lá, porque o tempo irreversivelmente foge, e eu quero mesmo é tirar uma soneca. Manhã de domingo foi feita pra isso, e pra uma mãe de bebê, soneca no meio do dia é luxo. Quando me desligo de tudo, relaxo e fecho os olhos, mais um filho-de-belzebu passa na rua. Adivinhem o resultado.

Vem ni mim, 2 de outubro.

Precisamos voltar mais vezes

(Para ler ouvindo Attraversiamo – Dario Marianelli)

Hoje eu voltei àquela casa à qual minha alma pertencia. Eu queria saber se eu ainda estava em casa. Queria ver aquela casa, talvez sentir o que senti naquele dia do espelho. Há tanto tempo não voltava lá… já não era mais a mesma pessoa. Ou era? Precisava descobrir. Entrei com cuidado, não era minha. Era um lugar onde eu morava. Continuava linda. Uma casa grande, no meio de uma floresta no outono. Havia folhas dentro, havia muito tempo que ninguém entrava. E lá estava o espelho. E ela dormia dentro dele, a menina. Deitada no chão. Sentei diante dela, que acordou suavemente. Nos olhamos, nós duas – e só nós duas – sabíamos de tudo. Tanta coisa tinha acontecido, ela acompanhou de lá, de longe. Eu tinha ido lá pra convidá-la a voltar, a sair do espelho. Precisava muito dela. Precisava ser um pouco do que eu era antes. Ela precisava continuar a viver, e viver outras histórias. Começou mais uma vez a chover, mas desta vez uma chuva mais forte. Escura. Fui à janela e ela já estava ao meu lado. Amamos a chuva. E o cheiro da chuva, aquele cheiro que pertencia àquele lugar maravilhoso. Foi diminuindo, diminuindo e virou uma chuvinha fina, que a luz do sol mais uma vez transformou em ouro. Nos fundimos novamente. Agora voltaríamos a ser uma só. E precisaríamos descobrir como seríamos a partir dali. Ela me deixaria mais suave. Eu a faria forte. Éramos eu e ela a mesma pessoa, mas eu precisava busca-la. Antes de descer olhei mais uma vez no espelho. Lá estava uma mulher que era também a mesma menina. E a casa já estava limpa.

“Precisamos voltar mais vezes”.

chuvadeouro

Para as novas mães, com carinho.

Há um ano eu vivia meu primeiro dia das mães, como mãe. Acordei, olhei pra minha filha no berço, e sorri. Ela tinha quatro meses de nascida e as dores da cesárea já tinham ficado pra trás. Eu me preparava pra voltar ao trabalho depois da licença maternidade e das férias, que juntei. Eu era, enfim, mãe.

Mas naquele meu primeiro dia das mães nem tudo era maravilhoso. Eu estava morta de cansada, ela acordava muitas vezes à noite. Quando alguém me dizia, ou eu lia, “meu bebê de quatro meses dorme a noite inteira sem acordar”, eu achava que só podia ser mentira. A noite inteira? Àquela altura eu comemorava um soninho esticado de quatro horas seguidas, que em determinado momento virou coisa muito rara. Ela acordava a cada hora, ou duas horas, ou hora e meia. Às vezes dormia mais, outras menos. Não havia um padrão, e eu tinha virado um zumbi. É claro que eu não estava sozinha, meu marido revezava comigo. Mas muitas vezes era o peito que ela queria. Acordava muitas vezes, mas normalmente voltava a dormir relativamente rápido, 20, 30 minutos, desde que mamasse no peito. No dia seguinte eu ficava no quarto pra dormir um pouco mais, enquanto ela ia pra sala com o papai.

Foram meses difíceis nesse aspecto, embora todo o resto compensasse com larga margem essa dificuldade. Sempre foi maravilhoso ser mãe, desde o primeiro momento. Apesar de difícil, maravilhoso.

Chorei muito nas primeiras semanas. Nos primeiros meses. Nunca de tristeza, mas muitas vezes de medo, de susto, de angústia, de solidão. Só quem se torna mãe sabe o quanto sua rotina muda enquanto a de seus amigos continua sendo caranguejinho – cervejinha – praia – cinema. Chega uma hora em que a gente só pensa em fazer a doida e sair sem rumo, rebelde, deitar na areia da praia, deitar no cinema, deitar, deitar, deitar. Porque eu sentia falta da diversão, da cervejinha, mas meu sonho mesmo era dormir. Dormir 18 horas seguidas, sem acordar nenhuma vez, feito pedra.

É claro que fiquei com a roupa que acordei muitas vezes até a noite, que tomei banho correndo enquanto ela chorava lá fora, mesmo no colo do pai, ou de outra pessoa (tem uma fase, loooonga, em que o apego é enorme), claro que tive que escolher muitas vezes entre comer ou dormir, e quase sempre eu dormi. Mas entre esses e outros apertos, ela me fazia rir muito, brincamos os três até faltar ar, os olhinhos dela me fizeram chorar de tanto amor com que me olhavam. E amamentar… a coisa mais mágica e maravilhosa que já fiz na vida. Ter um parto natural teria sido um sonho, que infelizmente não realizei. Mas amamentar foi a melhor coisa que já fiz. E fiz por mais de um ano, que sorte a minha. Indescritível. Sublime. É ainda mais do que isso.

Às mães que estão passando por todo esse turbilhão dos primeiros meses, eu tenho uma coisa carinhosa a dizer: vai passar. Vai passar! Vai melhorar! Esqueça o que te disserem se for diferente disso. Ignore o “é daí pra pior”. Vai passar sim, e fica cada vez melhor. Seu filho vai dormir. Você vai dormir. Ele vai ficando mais independente e vai brincar com você, e também sem você. Você vai poder cuidar de você, aos poucos, mas vai. Da casa, da sua vida profissional, do seu amor. É devagar, respeite o tempo do seu bebê. Mas um dia você vai perceber que noites sem dormir são comuns na vida de mãe e filho, e que um belo dia vocês estarão dormindo tranquilos.

Ouça música com ele, cante pra ele, dance. O melhor brinquedo de um bebê é pai e mãe. Folheie livros, ensine a fazer carinho.

O começo pode ser difícil, mas vai ficando mais fácil. Acredite nisso e continue firme! Ou desabe de vez em quando, se tiver alguém pra te segurar, melhor. Lembre que super heróis não existem, mas as mães chegam perto.

Parabéns a nós, que descobrimos a cada dia que somos muito maiores do que jamais poderíamos supor. Que damos conta de tantas coisas, que às vezes só a gente, intimamente, sabe, mais ninguém. Ninguém. Mas lá dentro, a gente se ama mais porque pode amar tanto. E não pede nada em troca. Eu não peço. Mas minha filha me dá muito mais do que eu poderia sonhar em querer.

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Deus me livre de ser Deus

Em um desses momentos em que a gente se pega pensando coisas aleatórias e aparentemente sem utilidade, eu descobri que estou aliviadíssima porque eu não sou Deus. Explico.

Somos ao todo sete bilhões de pessoas no mundo. Não sei se esses dados são dos organizadores ou da Polícia Militar, mas ainda que haja uma margem de erro, de dois bilhões para mais ou para menos. Alguém sabe o que significa um bilhão? É muito mais do que poderíamos imaginar, então de um bilhão pra cima é tudo basicamente a mesma coisa, muita gente. Então: você que me lê deve ter uma vida bastante complexa. Relações pessoais, profissionais, afetivas, problemas financeiros, anseios, desejos reprimidos, horários a cumprir. Você não é você sozinho. É você e todas as pessoas e coisas que construíram o que você é hoje. Acompanhando até aqui? Agora imagine toda essa complexidade da sua vida, que certamente daria um filme, multiplicada por sete bilhões! É muita coisa pra Deus dar conta.

Eu rezo toda noite. Antes de minha filha nascer eu negligenciava às vezes, mas depois que ela nasceu, bato ponto numa prosa com Deus toda noite, todinha. Eu tenho muitos agradecimentos a fazer, mas também tenho cá minhas demandas. Fico imaginando cada pessoa que vejo na rua. Não são bonecos, figurantes sem alma que estão lá pra compor o cenário. Eles também tem vidas complexas, amigos, questões profissionais, filosóficas, dilemas.

Deus deve receber muitos, muitos pedidos. Mas será que a gente, que ocupa tanto Deus, dá uma ajudinha a Ele? Isso veio no trilho dessa minha reflexão filosófico-religiosa de dia desses. Ele deve precisar de ajuda. Tudo bem que Ele é o Todo Poderoso, uma folha não cai da árvore sem o consentimento Dele, dizem, mas nem Deus pode ser tão autossuficiente que não aceite uma mãozinha. O problema é que, proporcionalmente, poucas pessoas devem fazer isso. “Deus, deixa eu cuidar disso aqui pro Senhor”, e alimentar alguém que não tem o que comer, alfabetizar pessoas que não tem acesso a educação, compartilhar tempo e conhecimento, resolver uma questão burocrática pra uma pessoa idosa, salvar alguém do afogamento, sei lá. Fazer sem compromisso, só pra dar uma desafogada nas tarefas de Deus. E deixaríamos pra Ele apenas as coisas mais difíceis, como consolar quem perdeu alguém que amasse muito, transformar homens desonestos em honestos, amansar o povo do Estado Islâmico, acabar a corrupção, instaurar a paz mundial, essas coisas um pouco mais complicadas.

Mas nem o que a gente poderia fazer, a gente faz. Digo a maioria de nós. Eu não faço. Eu sempre fico pensando que preciso devolver algo ao mundo por merecer tanta coisa boa em minha vida, como minha filha, mas acabo me limitando a fazer muito pouco. “Vou fazer, vou fazer”.

É duro ser tão abnegado como Ele. Atender nossas demandas inquietas e entender que não vamos retribuir porque somos assim mesmo, individuais e individualistas.

Deus que me livre de ser Deus.

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