Delita e Capitulina

“Ela morreu”.

Acordei no meio da noite com um homem dizendo isso em voz alta em meu quarto. O susto foi grande. Não havia ninguém em casa além de mim e dos meus pais, que dormiam tranquilamente no quarto deles. Mas alguém havia dito essas duas palavras ali, entre aquelas quatro paredes, no meio da madrugada. “Ela morreu”. Vejam, não estou me referindo a espíritos, não é isso, embora não possa descartar a possibilidade, porque não creio em bruxas, mas que elas existem, existem. Só que não havia mais ninguém ali.

O fato é que as palavras “ela morreu” me levaram de volta a uma noite quatro anos antes, quando, já por volta das 11 horas, o telefone tocou em casa. Era uma tia, dizendo que minha avó, que viera do interior para se tratar de um problema de saúde, não passava bem. Meu pai atendeu, e pelo tom de sua voz senti que o problema era grave. Minha avó gemia de dor, e minha tia estava nervosa. Meu pai receitou um remédio, não é médico, mas trabalhou toda a vida com farmácia, e conhece substâncias como um médico. Desligou o telefone. Passou um tempo, a situação acalmou-se. Todos dormimos. No meio da madrugada toca o telefone. Meu pai vai atender, tenso e angustiado. A conversa não demora. “Alguém está indo levá-la ao hospital?” Sim, havia um sobrinho que morava mais perto e que estava a caminho. Meu pai já não dormiu. E eu, a cada toque de telefone, me afundava mais na cama. Eu não queria ouvir, eu não queria saber. Eu fingia estar dormindo, porque se eu não participasse daquilo, era como se não estivesse acontecendo. Talvez de alguma maneira eu sentisse a gravidade da situação, e não queria de jeito nenhum enfrentar. Até que mais uma vez o telefone tocou. Eu não ouvi quase nada. Segundos depois veio o ruído do telefone encaixando-se no gancho. Passos no corredor. Meu pai passa na porta do meu quarto, segue em direção ao dele e fala à minha mãe, quase num sussurro engasgado, sem crer, mas o mais firme que ele pôde: “Ela morreu”.

Eu, num gesto egoísta, infantil e covarde, apertei o travesseiro na cabeça e ouvidos, cerrei os olhos, me contraí inteira. Não quero. Não quero. Não era verdade. Não podia ser. Mas era. Eu enfrentava a morte da minha avozinha Capitulina, que me chamava de Delita e que conversava com os cágados do quintal, e enfrentava a dor do meu pai, um menino, agora órfão de mãe, a mulher forte e guerreira que ele tão bem descreve em suas histórias. Ela morreu. Depois de entrar numa bolha particular, como que pra fingir que nada daquilo estava acontecendo, saí, me levantei e encarei meu pai, olhos cheios de lágrimas, desnorteado pra lá e pra cá da casa, tentando organizar um copo que estava fora do lugar, um pano que tinha caído no chão, como que pra ocupar sua mente para que ela não entrasse em colapso. Minha mãe, tentando apoiar o marido, e a filha que tinha acabado de perder a avó, era a imagem de uma mulher que gostaria de guardar a família debaixo da asa. Minha irmã já morava fora.

Meu pai sentou, chorou um pouco, mas sempre de maneira contida. Chorei com ele em silêncio. Fomos deitar. Eram 3 da madrugada e àquela hora não havia mais o que fazer. Deitar, mas não dormir. Cedo fomos até lá e as providências foram sendo tomadas.

Aquelas palavras, “Ela morreu”, me assombram ainda hoje. Elas me apunhalaram de maneira tão aguda, que não posso pronunciá-las juntas sem sentir, ao menos um pouco, a sensação de negação que tive aquela noite. E quando acordei ouvindo “ela morreu” dentro do meu quarto, me assustei. Eu não sei quem disse. Mas era uma voz clara, masculina, quase me alertando, quase me chacoalhando. “Acorde, porque ela morreu”. Se isso foi um recado, não sei se entendi direto. Acordei angustiada e triste. Não exatamente com medo. Talvez seja meu subconsciente me avisando que diante de momentos em que a vontade é de negar fatos trágicos, essa é justamente a hora em que é preciso acordar. Talvez seja a força desse registro em minha cabeça, reverberando tanto tempo depois. Talvez seja minha mente tentando me fazer finalmente acreditar na perda da minha avó. Sim, ela morreu.

Há dois dias sonhei com ela. Era dia de finados e seu aniversário. Talvez tenha sido uma visita, mas não era aquele sonho clássico, de filme, “estou bem, cuide de fulano de tal”. Não, era uma conversa trivial, nem lembro sobre o quê. Mas de fato ela estava mais jovem.

“Ninguém deu comida pra gente hoje, dona Capitulina!”, dizia ela no quintal quando eu era criança, fazia voz de menino, como se fossem os cágados que moravam no fundo da casa falando com ela. A gente olhava, eu e minha irmã, sorriso congelado no rosto, e depois gargalhadas finas. Diversão pura e simples. “Olha aquela fulô ali, Rai”, “não é fulo, vó, é flor!”, “Ah é, verdade”. “Deus lhe abençoe, Rai!”, “não vó, é Delita no telefone”, “Oh, é mesmo”. “Corta uma fatilha desse bolo aí pra mim, Delita”. “Não é fatilha vó, é fatia!”. E nos desmanchávamos em risos.

Não precisa me lembrar. Não esqueço que ela morreu. Mas o mais importante de toda essa história é que ela viveu.

Fuxico de vovó.

Fulô na frente de casa.

9 responses to this post.

  1. Posted by Aline on 4 de Novembro de 2010 at 15:26

    Coisa linda Dele! Me emocionei….de lembrar das risadas que dei, dos apelidos que só ela sabia colocar, so fuxico que so ela sabia fazer…. e da maneira só dela de nos dar carinho!! De ouvir ela me chamar de muriçoca de calçola… NOSSA!! Linda de viver…. essa era minha vozinha

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  2. Posted by nardele on 4 de Novembro de 2010 at 15:42

    Ohhh Line! Que bom que você veio ler! Ela era única mesmo. Os fuxicos, é verdade, os fuxicos só ela sabia fazer. Ela me dava uns retalhos pra tentar fazer também, mas saí tudo um desastre. E ela tentava me ensinar, com a maior paciência. Muriçoca de calçola! hahahaha… Só ela. A gente sabe.

    Beijo!

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  3. Coisa linda mesmo pyl, vc me fez viajar no tempo e ver vovo toda linda com a passadeirinha dela na cabeça, adornando os cabelinhos ralos e lisos que ela tinha. Oh saudade daquela pessoa tão boa, tão doce, tão amorosa com a gente! Ela era unica e a saudade que sinto dela as vezes doi no coração (agora mesmo doeu) meus olhos que os digam…

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  4. Posted by nardele on 4 de Novembro de 2010 at 20:25

    Sim, Pipyl. Também viajei até ela. Mas é uma saudade que não doeu em mim. O que doeu foi a lembrança daquela noite, mas passou! A lembrança dela é só linda!

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  5. Posted by silvinha lacerda on 4 de Novembro de 2010 at 21:06

    ola querida!! vc me fez chorar sem querer agora. me fez lembrar de minha vozinha carminha. vixe , to arrepiada!! vc falou de sua capitulina , do mesmo jeitinho que eu me refiro a minha vozinha. do jeitinho de falar, do quintal, qdo ela trocava os nomes…
    ameiiiiiiiiiiiiiiii este texto!!! de uma verdade, sem noção!! passou um filme na minha cabeça agora!!
    bjssssssssss

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  6. Que lindo, Nardele!
    Me senti lendo um livro, como se estivesse no final, já entrosada com os personagens.
    Lembrei de minha Bisa, que faleceu perto do Natal. Ela também tinha um quintal – cheio de flores – e cágados. Além disso, tinha também uma casinha onde punha banana para os passarinhos que ficavam por ali se alimentarem.
    Tem gente que vai e deixa saudades. O que importa é que tivemos a honra que conviver com elas.
    Que você possa ter bons sonhos, recordando sempre momentos de alegria!
    Beijos,
    Sandra.

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  7. Posted by nardele on 5 de Novembro de 2010 at 14:42

    Silvinha e Sandra,

    Fiquei feliz com os comentários de vocês. Nossas avós, e a Bisa de Sandra, certamente foram pessoas especiais, que nos ensinaram muita coisa. E o melhor que elas deixam pra nós é essa ternura na lembrança, essa coisa doce, feliz, carinhosa com a gente e com a natureza.

    Honra nossa mesmo. Tomara que a gente possa ser vozinhas tão doces quanto elas foram.

    Beijos!!

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  8. Que texto lindo, Ná!

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    • Eu nunca tinha lido esse texto. Me deparo com ele nesse momento. Sei, perfeitamente, o quanto Nardele é capaz de nos embalar em sentimentos pela sua habilidade textual. Ela fala como se estivéssemos vivendo o drama. Me orgulho disso -mas invejo, acima de tudo. De uma coisa eu não tenho dúvidas: Dona Capitulina estará, certamente, no Reino do Céu – ao lado de DEUS rogando felicidades a todos nós e á sua Delita tão por ela AMADA.

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